Uma trajetória notável
Nascido em Campinas, interior de São Paulo, Antônio Carlos Gomes (1836-1896) teve o mérito de nascer pobre numa cidade pouco importante (imaginem Campinas em 1836) de um país atrasado e de fazer sucesso num dos mais importantes teatros de ópera do mundo, o Teatro alla Scala de Milão.
Equivaleria, nos dias de hoje, a um cineasta nascido de família pobre no interior de Goiás ir para Los Angeles e em sete anos ganhar um Oscar. Só isto já faria dele um verdadeiro herói nacional.
Se pensarmos que este sucesso retumbante que aconteceu na estreia da ópera Il Guarany na noite de 19 de março de 1870, aconteceu a um músico de apenas 34 anos de idade, vemos que as injustiças ao primeiro compositor brasileiro a adquirir renome internacional foram terríveis. Começaram ainda no século XIX e se estendem até os dias de hoje.
Primeira grande injustiça: os republicanos
Carlos Gomes foi estudar na Europa com apoio pessoal do Imperador Dom Pedro II. Além de uma ajuda financeira o Imperador, extremamente culto e bem relacionado com o meio cultural europeu, abriu caminho para o jovem músico não só através de meios financeiros mas por meio de cartas de recomendação.
A estreia brasileira de sua ópera mais conhecida, Il Guarany, no mesmo ano da estreia europeia, foi um grande êxito para o império brasileiro, e sua ópera Lo Schiavo (O escravo) foi dedicada à princesa Isabel em 1887, pouco antes de ela ter assinado a Lei Áurea.
Quando a república foi proclamada em 1889 a situação de Carlos Gomes ficou bem incômoda frente aos novos governantes. Esta guinada política coincide com o início da doença que iria lhe tirar a vida.
Os militares republicanos recusaram oferecer a ele a direção do Conservatório de Música do Rio de Janeiro, sendo que sua única opção foi aceitar um cargo em Belém do Pará, cargo este que nem chegou a ocupar formalmente, visto que a doença o matou logo depois de sua chegada ao Pará em 1896.
A maneira sórdida como os sórdidos implantadores da república o tratou foi a primeira grande injustiça que sofreu, ainda em vida, nosso maior compositor do romantismo musical.
Segunda grande injustiça: os modernistas
No magnífico livro “Carlos Gomes – Um tema em questão: a ótica modernista e a visão de Mário de Andrade” do maestro Lutero Rodrigues (Editora Unesp) podemos tomar contato com a maneira que os artistas paulistas viam a obra de Carlos Gomes.
Pouco antes de acontecer a “Semana de Arte Moderna” de 1922 Oswald de Andrade publicou um longo texto com as seguintes ofensas ao compositor: “Carlos Gomes é horrível.(…)De êxito em êxito, o nosso homem conseguiu difamar profundamente o seu país, fazendo-o conhecido através dos Peris de maiô cor de cuia e vistoso espanador na cabeça, a berrar forças indômitas em cenários terríveis”. Cito apenas uma pequena parte do que Oswald de Andrade escreveu a respeito. Ele chama a arte de Gomes de “inexpressiva, postiça, nefanda…”, e estas opiniões abalaram de forma decisiva o prestígio do compositor.
Em 1936, o centenário do nascimento do músico foi comemorado como uma espécie de resgate do “Estado novo”. As punhaladas que Mario e Oswald de Andrade deram no compositor foram minimizadas. Numa época em que as óperas de Carlos Gomes eram montadas com frequência, tanto no Brasil como no exterior, fizeram destes raivosos comentários uma coisa vista como meras excentricidades.
Terceira grande injustiça: o esquecimento
nos dias de hoje
Se os republicanos decretaram o ostracismo de Carlos Gomes, se os Modernistas o chamaram de vergonha nacional, o meio musical brasileiro dos dias de hoje comete uma injustiça tão grande como as duas já citadas.
A obra de Carlos Gomes é raramente executada. Exemplo disso é nossa melhor orquestra, a OSESP, que simplesmente ignora o grande compositor. Na recente excursão europeia a orquestra, que brilhou executando a Primeira Sinfonia de Mahler, executou como abertura em diversos concertos um arremedo sem graça em cima do hino nacional composto por uma autora mais ligada à música popular.
Por que não abrir o concerto com páginas sinfônicas de grande beleza e efeito do compositor campineiro como a “Alvorada” da ópera Lo Schiavo, ou a abertura de Il Guarany? O famoso maestro italiano Giusepe Sinoppoli (1946-2001), por exemplo, costumava abrir alguns concertos na Alemanha com as aberturas das óperas “Fosca” e “Il Guarany”, coisa raramente feita aqui.
As partes orquestrais das óperas menos conhecidas do compositor (Maria Tudor, Condor) estão se desfazendo, e em breve não será mais possível executá-las.
Nas décadas de 50,60, 70 e 80 o Theatro Municipal do Rio de Janeiro e o de São Paulo executavam com frequência as óperas do mestre, e artistas internacionais como o tenor Mario del Monaco e o soprano Antonieta Stella mantinham Il Guarany e Lo Schiavo em seus repertórios. Isto tudo virou passado.
Em São Paulo havia um maestro que defendia com unhas e dentes a obra de nosso conterrâneo: Armando Belardi. A convicção com a qual ele dirigia as obras de Carlos Gomes não sai de minha memória.
O famoso tenor espanhol Plácido Domingo se interessou pela obra mais conhecida do compositor, Il Guarany, mas mesmo com ele cantando exemplarmente a gravação que ele realizou não decolou pela falta de comprometimento da equipe.
Se a obra se chama “ópera ballo” por que cargas d’água cortaram o ballet, uma das páginas mais interessantes da obra? Aliás, mesmo com condições técnicas inferiores é bem preferível a gravação feita em 1959 em São Paulo com a impecável e comprometida regência de Armando Belardi e com a participação da eterna Niza de Castro Tank.
Aliás, vale a pena ressaltar que junto ao Theatro Municipal de São Paulo há um belíssimo monumento homenageando o compositor, mas este mesmo teatro não monta uma obra de Carlos Gomes há décadas.
O Theatro Municipal do Rio de Janeiro, que já montou obras importantes do autor, encontra-se de tal forma sucateado que também não monta nada do compositor há muito tempo.
Fatos e versões
Algo bem prejudicial a Carlos Gomes é compara-lo a Giuseppe Verdi. Sem dúvida o compositor italiano possuía um tipo de genialidade que o brasileiro não tinha. Mas se o Brasil fosse um país que tomasse mais a sério a sua produção cultural poderíamos perceber, e defender, que Carlos Gomes não fica nada a dever a compositores da mesma época como Amilcare Ponchielli (1834 –1886), autor da famosa ópera “La Gioconda”.
Muitas pessoas criticam que o índio Peri canta em italiano, mas estas mesmas pessoas esquecem que isso era uma convenção da época. Poderíamos criticar então que os espanhóis em “Le nozze di Figaro” de Mozart cantaram em italiano para um público austríaco, mas isto também seria um completo absurdo.
A obra de Carlos Gomes tem um valor indiscutível, e conhece-la é de uma enorme importância para nós brasileiros.
A bibliografia sobre o compositor é dificilmente encontrada e nem sempre de alto nível. Lamento, por exemplo, o desaparecimento total do livro “Uma força indômita” do musicólogo Marcus Góes, editado pela Secretaria de Cultura do Pará, o mais bem documentado estudo sobre o compositor. Ele aparece à venda no Mercado Livre por R$ 250,00, como uma raridade!!!
Não posso deixar de registrar aqui os grandes defensores da obra do compositor. Perdão pelos esquecidos. Inicialmente o soprano Niza de Castro Tank, grande artista, que fez um trabalho de resgate da obra de seu quase conterrâneo (ela nasceu em Limeira) e que sempre cantou a música de Carlos Gomes com uma fé inquebrantável. Em outubro de 1992 tive um dos maiores privilégios de minha vida quando executei com ela em Brasília o Oratório “Colombo”. Já falei da arte do maestro Armando Belardi, mas destaco também a fé e energia do maestro Eleazar de Carvalho. Quem o viu regendo Lo Schiavo sabe o que quero dizer com “fé inquebrantável”. Dois barítonos não me saem da mente: Fernando Teixeira e Rio Novello. Eles também me fizeram acreditar na genialidade do compositor.
Com tanto desprezo e esquecimento creio que Carlos Gomes será, em pouco tempo, lembrado apenas como nome de rua e de praça, e será tido para muitos como um político…
Artigo do maestro Osvaldo Colarusso
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